A menina que costurava

A menina que costurava

Diferente das moças de sua época, habituara-se de pequenina às agulhas e linhas.
Não era exatamente um passatempo, um capricho, era mesmo uma necessidade.
Diferente de outras necessidades essa vinha da alma e de sua história.
Quando podia, entregava-se a solidão dos bastidores e da antiga máquina de costura herdada da avó.
Enquanto a inexperiência imperava, na mais tenra idade, remendava apenas. Tratava de fechar os buracos que a vida lhe abria rapidamente, menos os dela que aos poucos se abriam e mais dos outros que teimavam em se escancarar. Com a linha e a cor que lhe caísse nas mãos fez muitos remendos… remendando, remoendo… remendando, remoendo.
Remendou e remoeu tanto que aprendeu a cerzir, o que veio em boa hora pois de tanto abrir e fechar alguns locais estavam rotos.
Uns diziam que era uma habilidade, outros um descompasso… algo fora de ordem ou de lugar. Uma mulher de antigamente no corpo de uma mocinha.
Por ocasião de seus 13 anos ganhou uma caixa de costura. Linhas, agulhas, alfinetes, fita métrica, botões, giz para riscar, colchetes, zíper e muitas outras preciosidades e passou então a cerzir também os seus buracos.
De tempos em tempos lá estava ela, com a caixa nas mãos a movimentar os pés na antiga máquina.
Cerziu tantos buracos deixados pela vida, que um dia decidiu criar algo. Desenhou, cortou, fixou, costurou e produziu algo que não dava notícias de um conserto e sim de uma peça exclusiva… feita de sonho.
Seus sonhos de mocinha passaram a ser alinhavados uns nos outros e sonhados sobre o vai e vem da música suave e tranquilizadora de sua máquina de costura.
Quando os pés se cansavam as mãos tomavam-lhes a função.
Muitas vezes, de tecidos amarrotados e sem vida, surgiam delicadezas para decorar um lar, um corpo, uma alma.
Do emaranhado de fios de sua vida nasceu-lhe o dom.
Assim foi durante muitos anos. A mocinha se casou, teve filhos, costurou para si um lar acolhedor e bem trabalhado com os pedaços soltos e linhas coloridas.
E vez ou outra lá estava ela e sua caixa de costura… ora a cerzir, ora a produzir.

Sua filha nunca desejou aprender a costurar. Certamente tinha menos buracos para remendar, o que era estupendo!
Com a maturidade e a velhice, seus olhos e mãos começaram a lhe trair. Onde está o buraco desta agulha? Talvez eles           tivessem diminuído na mesma proporção dos buracos de sua história. Talvez suas mãos, já um pouco ásperas, devessem apenas se dedicar a sentir o que tocavam sem a necessidade de transformar, de fechar, de produzir.
Um dia, acordou bem cedo e pôs-se a limpar e lubrificar a sua máquina. Sabia que aquele era o seu equipamento de reparos e de construção…
No ziguezague sua angústia se dissipava, no alinhavo as peças se juntavam, nos alfinetes os tecidos se mantinham no lugar e nas agulhas as dores eram suturadas.
Nem sempre soube disso, mas um dia percebeu…
Arrematou seu pensamento a um estranho sentimento de força.
Soube que a máquina que operava a máquina era capaz de sobreviver e fechar com delicadeza e poesia as suas feridas mais doídas.
E como um zíper, um sorriso abriu… aquele aparato era ela mesma”.



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