Relações abusivas: quando o afeto vira armadilha

Na esteira do texto anterior: controle não é cuidado, é preciso falar sobre um tema bastante comum e infelizmente recorrente. São histórias que se repetem com variações dolorosas: vínculos que começam com promessas de amor intenso e presença constante, mas que logo se transformam em relação de controle, chantagem emocional e isolamento. Relações abusivas nem sempre começam com gritos ou violência visível. Muitas vezes, elas se instalam silenciosamente, sob o disfarce de “cuidado”, “zelo” e “proteção”.

O ciclo de uma relação abusiva

Relações assim são compostas por um ciclo que se retroalimenta:

  1. Idealização inicial: o parceiro abusivo se mostra intensamente presente, sedutor, prestativo.
  2. Restrição gradual: com o tempo, começa a criticar amizades, familiares, hobbies e atividades externas do outro.
  3. Isolamento: a vítima, para evitar conflitos ou por acreditar que está “escolhendo o amor”, se afasta de sua rede de apoio.
  4. Chantagem emocional: o abusador se coloca como centro afetivo exclusivo da relação e passa a manipular o outro por meio da culpa, do medo ou da instabilidade emocional.
  5. Manutenção e culpa: quando o parceiro ameaçado tenta romper ou questionar, é acusado de ingratidão ou egoísmo. Assim, volta ao ciclo por acreditar que a culpa é sua.

O perfil do abusador

Embora não exista um único perfil fechado, muitos abusadores compartilham características comuns:

  • Necessidade extrema de controle e posse, mascarada por zelo e proteção.
  • Comportamentos ciumentos intensos, geralmente justificados como “provas de amor”.
  • Dificuldade em lidar com rejeições, frustrações ou a autonomia do outro.
  • Histórico de relações familiares marcadas por negligência, violência emocional ou desamparo, o que alimenta uma estrutura psíquica frágil, muitas vezes sustentada pela dominação do outro.
  • Capacidade de manipulação emocional, utilizando sentimentos como culpa, medo e insegurança para manter o controle.

Na base, há quase sempre uma vivência infantil de falta, uma ferida narcísica mal elaborada que o sujeito tenta reparar pela apropriação do outro.

O perfil da vítima

Pessoas que se tornam vítimas de relacionamentos abusivos não o são por fragilidade ou ignorância. Pelo contrário: muitas vezes são pessoas sensíveis, empáticas e com histórico de experiências afetivas marcadas por insegurança emocional, medo do abandono e carência de reconhecimento.

  • Tendem a interpretar o controle como cuidado.
  • Têm dificuldade de estabelecer limites e de sustentar a própria autonomia afetiva.
  • Têm uma escuta voltada para o outro, mas pouco para si mesmas.
  • Em muitos casos, carregam fantasmas infantis de abandono ou rejeição que as tornam mais suscetíveis à manipulação.

Isolamento como ferramenta de dominação

O isolamento é um recurso poderoso do abusador. Ele sabe que, sem rede de apoio, a vítima terá menos força para questionar ou romper a relação. Por isso, passa a criticar os amigos, a família, ou simplesmente fazer com que a vítima “escolha” o parceiro em detrimento dos demais vínculos.

Isso pode ocorrer por meio de frases como:

  • “Se você me amasse, não iria sair com eles hoje.”
  • “Sua família não te entende como eu entendo.”
  • “Essas suas amizades só te afastam de mim.”

Com o tempo, a vítima passa a viver num mundo emocional de exclusividade forçada, no qual tudo gira em torno do outro.

Romper é possível

Sair de uma relação abusiva não é fácil — e não deve ser tratado com julgamento ou simplificação. Requer apoio, escuta, redes de proteção e, muitas vezes, intervenção profissional. Mas é possível. Quando o sujeito começa a se escutar com mais profundidade, o laço adoecido começa a se desfazer.

Romper esse ciclo exige, antes de tudo, reconhecimento. A escuta clínica permite abrir espaço simbólico para que o sujeito perceba a diferença entre amor e dominação, entre carinho e aprisionamento.

 

 

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