No silêncio do consultório, enquanto escutamos, algo em nós também se move.
A clínica é espaço de elaboração, mas também de travessia. A cada encontro, o analista se encontra — com o sofrimento do outro, do mundo e com aquilo que desse sofrimento reverbera dentro de si. E não há como passar por isso ileso.
Não deveria haver.
Depois de um dia intenso de atendimentos, é comum o corpo pesar, a mente não render mais, a escuta se calar mesmo em silêncio. E, às vezes, a alma precisar de recolhimento. É o que chamo de “cansaço do analista” — mas que, na verdade, é mais do que um simples esgotamento: é a marca do encontro entre a nossa humanidade e a do outro.
Esse cansaço não fala, necessariamente, de uma neurose pessoal mal resolvida, ou da falta de análise — como tantos temem ou sugerem. Ele fala da natureza do nosso trabalho: escutamos o que ninguém quer dizer, sustentamos o que é insuportável, colocamos nosso corpo e nossa presença a serviço do que é invisível. Isso, inevitavelmente, cobra seu preço.
Freud, em uma carta a Jung em 1907 já nos alertava: “Nosso trabalho de escuta exige muito mais de nós do que se imagina. É necessário cuidar de si para poder sustentar o outro. Nenhum médico pode dispensar o repouso da alma.”
Há dias em que somos atravessados por histórias que ecoam na nossa história. Há semanas em que vemos se repetir, em múltiplos casos, os mesmos temas: morte, abandono, violência, perdas, medos, ressentimentos. Há meses em que a clínica se torna espelho de um mundo em crise, e a função analítica parece menor diante da brutalidade do real.
Mas não é menor. É exatamente aí que ela se torna essencial.
Para ainda maior exaustão, hoje em dia, temos o tempo de tela. Parece que não, mas a escuta na tela exige um grau de atenção quase sobre-humana. O campo transferencial se modifica, a corporalidade é reduzida a quadros. O olhar não repousa, a voz nem sempre alcança, os gestos são truncados, os silêncios carregam outro peso. E o analista, ali, preso entre o próprio rosto refletido na câmera e a tentativa de manter o setting vivo.
Nesse contexto, o cansaço não é só físico — é um cansaço do olhar, da presença, da sustentação de um espaço clínico que precisa ser recriado a cada sessão.
Reconhecer o próprio cansaço — e poder nomeá-lo como parte do ofício — é também uma forma de cuidado. É o que nos impede de cair na onipotência ou na anestesia.
É o que mantém viva a nossa escuta.
Inspirando- me em Winnicott, é possível dizer que o analista só pode ser continente se houver, também para ele, um espaço emocional possível para existir.
Esse espaço precisa ser protegido — inclusive, de nós mesmos.
Se esse espaço colapsa, colapsa junto a possibilidade de escuta viva.
Somos analistas, sim — mas somos também pessoas atravessadas pelo tempo, pela cultura, pelas próprias marcas. E é a partir desse lugar implicado, afetado, ético e não idealizado que seguimos fazendo o que fazemos: estar com o outro.
Cuidar da nossa escuta passa por cuidar de quem escuta. E isso não se faz apenas com análise, supervisão ou teoria — mas também com silêncio, descanso, natureza, poesia, vínculos e limites.
Coerência é necessária entre o que oferecemos ao outro e a nós mesmos!