Vivemos uma era marcada por um deslocamento preocupante nos papéis geracionais. Crianças que pulam etapas do desenvolvimento para se tornarem adultas antes da hora — enquanto adultos recusam o amadurecimento, permanecendo aprisionados em posições infantis, dependentes e emocionalmente frágeis.
Essa inversão silenciosa, mas visível, está aí, nos jornais, nos relacionamentos, nas mídias sociais.
Crianças que se apresentam como adultas
As redes sociais tornaram-se vitrines onde crianças e adolescentes são expostos (e se expõem) com visual adulto, comportamento erotizado e linguagem performática. Danças sensuais, roupas justas, filtros estéticos e discursos maduros escondem, muitas vezes, um vazio de experiências internas realmente elaboradas.
Essa adultização precoce interfere diretamente nos processos psíquicos de construção da identidade, da autoestima e da sexualidade. Ela gera:
- Confusão emocional entre desejo de aceitação e erotização precoce;
- Desenvolvimento psicossexual perturbado, com risco de hipersexualização e autoimagem distorcida;
- Problemas de autoestima e identidade, pela comparação constante com padrões inatingíveis;
- Fragilidade narcísica, sustentada por curtidas e validações externas;
- Maior vulnerabilidade a abusos, especialmente quando os adultos ao redor não exercem função protetiva;
- Dificuldade futura de estabelecer limites relacionais e corporais;
- Ansiedade e depressão, que hoje atingem índices alarmantes em crianças e adolescentes.
Além disso, há uma pressa social pelo desempenho, em que crianças são cobradas como pequenos adultos: aulas extras, inglês, esportes, redes, marketing pessoal — o brincar, o tédio e o tempo livre viraram quase um luxo.
Adultos que se recusam a crescer
Na contramão, vemos adultos infantilizados, dependentes da aprovação alheia, sem tolerância à frustração, que vivem em função dos pais e evitam responsabilidades típicas da vida adulta. Alguns exemplos cada vez mais comuns:
- Morar com os pais até depois dos 30, sem contribuição ou plano de autonomia;
- Ser sustentado pelos avós, mesmo com capacidade física e mental plena;
- Exibir comportamentos regressivos: brincar com bonecas, colecionar brinquedos, passar o dia jogando videogame, usar chupetas para se aclamar, entre outros muitas vezes mascarado como “estilo” ou “autocuidado”;
- Sair batendo o pé de conversas difíceis ou reuniões de trabalho diante de críticas leves, sem recursos internos para suportar o desconforto psíquico do real;
- Evitar compromissos afetivos duradouros sob o discurso de “liberdade emocional”.
Essa infantilização não é inofensiva. Ela revela uma estrutura emocional fragilizada, marcada por:
- Dificuldade de lidar com perdas, lutos e separações;
- Necessidade de proteção constante e idealização de figuras cuidadoras;
- Evitação de conflitos e fuga de responsabilidades afetivas, profissionais e financeiras;
- Identidades ainda não consolidadas, mesmo com idade cronológica adulta.
Uma sociedade sem transições claras
Há etapas fundamentais no amadurecimento psíquico, e a negação dessas passagens produz sintomas, repetições e patologias do vínculo. O que vemos hoje é uma cultura que rompeu com os ritos de passagem, esvaziou a autoridade simbólica e confundiu liberdade com ausência de limite.
- Crianças não querem mais ser crianças;
- Adultos têm pânico de serem adultos.
No meio disso, pais exaustos tentam ser “amigos” dos filhos, educadores inseguros evitam o conflito, e as redes sociais ditam quem somos e o que devemos desejar.
Como psicóloga, observo que esse cenário exige uma escuta clínica atenta às posições subjetivas ocupadas por cada geração. Crianças adultizadas muitas vezes são vítimas de pais frágeis, narcisicamente dependentes dos filhos para validar suas próprias identidades. Adultos infantilizados, por sua vez, são muitas vezes resultado de infâncias marcadas por abandono emocional ou sobrecarga precoce de responsabilidades. Aqui não cabe generalização, não há matemática em hipóteses diagnósticas mas cabe reflexão: O que está levando a nossa sociedade a isso?
Ambos os quadros — da adultização precoce e da regressão tardia — revelam sofrimentos profundos, que precisam ser simbolizados e escutados com cuidado, sem julgamento moral, mas com firmeza técnica.
Precisamos revalorizar o tempo do crescimento, o processo da maturação emocional e os limites como forma de cuidado e não de opressão. A infância precisa ser respeitada como espaço de elaboração simbólica e psíquica. E a vida adulta precisa ser habitada com responsabilidade, vínculo e construção.
Sem isso, caminhamos para uma sociedade de adultos frágeis que não cuidam e de crianças sozinhas que não podem brincar.