O problema é sempre ele(a): quando o casal não olha para a própria repetição

Outro dia, sentada em um cabeleireiro, escutei — sem querer, mas com atenção clínica — o desabafo de uma cliente ao lado, conversando com a manicure:

“Minha vida é ótima, não tenho problemas. Os que tenho são ele quem me traz. As ex-mulheres dele, os filhos do primeiro casamento, a mãe dele que vive se metendo, o trabalho dele que é exaustivo…”

Na hora, pensei comigo: E quem foi que trouxe ele para a vida dela?

Essa vinheta cotidiana ecoa o que tantas vezes escutamos nas sessões de casal: a ilusão de que o problema está sempre do lado de lá. Ele que é ausente. Ela que é controladora. Ele que não conversa. Ela que nunca está satisfeita. A relação é apresentada como um palco onde o sofrimento é causado por um único ator, enquanto o outro apenas assiste, impotente e injustiçado.

Mas nenhuma relação amorosa se sustenta numa equação de causa e efeito simples. O vínculo conjugal é um campo de forças inconscientes e constantemente alimentado — mesmo quando uma das partes parece “inocente” ou “vítima”.

Brinco sempre que casal é Sintoma combinado. Como porca e parafuso.

Na clínica, é comum que a escuta psicanalítica descongele a queixa e a transforme em pergunta:

Por que me envolvi com alguém assim? O que me convoca a permanecer nesse lugar? Que roteiros afetivos estou repetindo sem perceber?

Como nos lembrou Freud, “o sujeito ama segundo os moldes de sua infância”. E nisso há uma potência e um risco. Potência, porque é na relação que podemos reeditar experiências e, às vezes, transformá-las. Risco, porque frequentemente o que fazemos é repetir — com novas roupagens — aquilo que conhecemos desde sempre: o abandono, o silêncio, o desprezo, a exigência constante de ser amado, a idealização do cuidado, o medo de não ser suficiente.

Quando alguém diz “meus problemas são ele (ou ela) que me traz”, é importante perguntar:

-Que tipo de sofrimento estou tentando terceirizar?

-Por que escolho repetir esse mesmo enredo — e ainda acredito que sou apenas vítima dele?

A repetição inconsciente tem uma lógica precisa: ela busca familiaridade e reconhecimento psíquico. Buscamos no outro algo que nos é familiar, mesmo que nos machuque, porque é nesse campo conhecido que tentamos, de forma inconsciente, resolver o que ficou mal resolvido.

Por isso, o trabalho clínico com casais não pode se sustentar apenas na tentativa de “melhorar a comunicação” ou “negociar diferenças”. O que se propõe é muito mais profundo: passar do lugar da acusação para o lugar da implicação.

-O que trago comigo para essa relação?

-Como minha história atravessa o modo como exijo, silencio, cobro ou abandono?

-O que repito, sem perceber, esperando que finalmente seja diferente?

É nesse deslocamento — da queixa sobre o outro para a escuta de si — que algo novo pode emergir. Quando cada um no casal começa a olhar para o que investe no vínculo, mesmo que doído, cria-se a chance de transformar a repetição em elaboração.

E, às vezes, é esse o único caminho possível para que a relação deixe de ser prisão — e passe a ser um lugar de construção mútua, real e viva.

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